História e Presença dos Povos Indígenas na Bahia

História e Presença dos Povos Indígenas na Bahia

José Augusto Laranjeiras Sampaio*

Os povos indígenas na Bahia estão inseridos em dois contextos históricos e regionais básicos e bem definidos, i.e., o do semiárido nordestino, ao Norte do estado, praticamente todo ele conquistado por frentes de expansão da pecuária durante o século XVII, e onde boa parte da população indígena sobrevivente à conquista foi reunida, até o século XVIII, em aldeamentos missionários de ordens religiosas, tais como as dos jesuítas e franciscanos; e o da Mata Atlântica e litoral, ao Sul e Extremo Sul do estado, onde a conquista se iniciou ainda no século XVI e aldeamentos missionários foram implantados já na segunda metade deste, mas em que o processo violento de contato, sobretudo das matas do interior, se fez de modo muito lento, prolongando-se até as décadas iniciais do século XX, quando os dois últimos bandos indígenas ainda autônomos no estado -- Hãhãhãi e Baenã -- foram atraídos ao Posto Indígena Caramuru do SPI (Serviço de Proteção aos Índios), no atual município de Itaju do Colônia.

Logo em seguida à expulsão dos holandeses do Brasil, nos meados do século XVII, a população dos aldeamentos litorâneos, de predominante origem etnolinguística tupi, passou a ser, gradativamente, considerada como não mais de "índios", surgindo, então, com referência a eles a expressão "caboclos", corruptela do termo tupi para "retirados da mata". Esta tendência à "desindianização" formal das comunidades de aldeamentos coloniais se intensificou com a expulsão do Brasil, no início da segunda metade do século seguinte, da ordem religiosa dos jesuítas, seguida da saída ou enfraquecimento também de outras ordens missionárias, cujos aldeamentos passaram a ser diretamente administrados pelo estado como "vilas", para as quais foram deliberadamente atraídos contingentes de não indígenas. Este processo atingiu, sobretudo, os aldeamentos no semiárido, de diversa origem etnolinguística, com possível predomínio da família Kariri.

No início do século XIX deflagrou-se, enfim, o processo de conquista das matas do Sul, empreendimento capitaneado pelo próprio estado em razão de uma nova geopolítica atlântica, com os conflitos na Europa e a migração da corte portuguesa para o Brasil. Na primeira metade desse  século seriam conquistados os Kamakã ou "mongoiós" do "planalto da Conquista", reunidos em seguida em aldeamentos missionários de existência efêmera nas bacias dos rios Pardo e Cachoeira; e toda a população indígena ainda autônoma no Extremo Sul, predominantemente da família linguística maxakali e etnia pataxó, depois compulsoriamente reunida, junto com remanescentes de aldeamentos coloniais costeiros, em uma única aldeia junto à foz do rio Corumbau, cuja implantação foi ordenada, em 1861, pelo Presidente da Província.

No século XIX prosseguiu a ocupação, por não indígenas, dos territórios dos aldeamentos e "vilas de índios" -- agora administrados por diretores nomeados pelo governo provincial --, processo que foi acelerado pela Lei de Terras de 1850. Eram comuns, na segunda metade desse século, documentos oficiais que declaravam não haver mais indígenas nesses estabelecimentos, e eles foram sendo, sistematicamente, extintos, até que, por um decreto estadual de 1890, a própria Diretoria de Índios na Bahia foi extinta. Deste modo, o estado ingressou no século XX sem contar mais com nenhuma comunidade indígena reconhecida enquanto tal pelo poder público, ressalvados os poucos bandos ainda autônomos nas matas do Sul, nas bacias dos rios Gongoji, Cachoeira, Pardo e Jequitinhonha. A maioria desses bandos foi simplesmente dizimada, entre 1910 e 1930, pelas frentes de expansão da lavoura cacaueira, exceto pelos dois pequenos grupos mencionados acima.

Vale ressaltar que o processo de intrusão sobre as terras que o próprio poder colonial havia destinado aos indígenas não se fez sem grande resistência destes, numa série de rebeliões e revoltas ao longo de toda esta história, algumas das quais se tornaram célebres, como a da "Santidade do Jaguaripe", de indígenas tupis, no Recôncavo, ainda no século XVI; e, na fase mais crítica deste processo, a série de revoltas das aldeias dos Kariri e Sapuyá, na Pedra Branca, no médio Paraguaçu, entre as décadas de 1840 e 1880; e, mais recentemente, nas décadas de 1920 e 1930, as rebeliões lideradas pelos "caboclos" Marcelino, entre os Tupinambá de Olivença, município de Ilhéus; e Sebereba, entre os Aricobé da antiga missão homônima no município de Angical, oeste do estado.

Em 1926, o governo estadual criou uma reserva para abrigar os indígenas no Sul do estado e nela foram instalados o dito Posto Caramuru, para os recém contatados Hãhãhãi, de língua pataxó, e Baenã, de filiação etnolinguística imprecisa, possivelmente Botocudos; e, mais ao sul, no atual município de Pau Brasil, o Posto Indígena Paraguaçu, para o qual foram atraídos contingentes de kariris-sapuyás egressos das revoltas da Pedra Branca; de kamakãs, dos falidos e invadidos aldeamentos do Pardo e do Cachoeira; de alguns tupis de antigos aldeamentos litorâneos, tais como Olivença, Trancoso e Barcelos, e ainda de guerens, grupo de Botocudos do antigo aldeamento de São Fidélis, no atual município de Valença. Demarcada apenas entre 1936 e 1937, esta reserva, que ficou conhecida como Paraguaçu-Caramuru, foi imediatamente invadida por fazendeiros de cacau e gado que se valeram de arrendamentos e da corrupção de servidores do SPI para desencadear um novo processo de expulsão dos indígenas que perdurou -- e quase foi plenamente consumado --, com lances de extrema violência, até a década de 1970.

Na década de 1940, povos indígenas no Sertão do estado se mobilizaram para reaver terras usurpadas dos seus antigos aldeamentos, chegando alguns a empreender longas viagens ao Rio de Janeiro para fazer contato com o Marechal Rondon, fundador e Presidente do SPI. Resultante disto, dois postos do órgão foram instalados; um em 1944, junto aos Tuxá da antiga missão e então vila -- e atual cidade -- de Rodelas, no submédio São Francisco, liderados em seu pleito pelo pajé João Gomes; e outro, em 1949, na também antiga missão do Saco dos Morcegos e então vila de Mirandela -- no atual município de Banzaê --, na bacia do médio Itapicuru, única remanescente de quatro notáveis aldeamentos coloniais jesuíticos que abrigaram, na região, os Kiriri falantes da língua Kipeá. Este segundo posto, para cuja implantação em muito contribuíram as gestões do Padre Renato Galvão, pároco da vizinha cidade de Cícero Dantas, assistiria ainda aos Kaimbé da antiga missão e então vila de Massacará, a mais antiga de todo o Sertão, no município de Euclides da Cunha. Entretanto, a situação possessória das terras dos Kiriri e dos Kaimbé, intrusadas por muitos pequenos posseiros e por alguns fazendeiros de grande prestígio político, se manteria inalterada até o início da década de 1980; enquanto que os Tuxá, cujo aldeamento chegou a abranger, no período missionário, cerca de trinta ilhas muito férteis do São Francisco, conseguiram reaver, ainda na década de 1940, apenas uma delas, a da Viúva, na qual trabalharam arduamente em cultivos comerciais de arroz e cebola até 1986, quando esta veio a ser inexoravelmente submersa pelo alagamento provocado com a construção da barragem da hidrelétrica de Itaparica, pela estatal Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco).

Na mesma década de 1940, os longamente esquecidos "caboclos" do Extremo Sul do estado, reunidos na aldeia à foz do Corumbau e agora redenominada Barra Velha, foram alcançados por uma iniciativa estatal, a da implantação, pelo governo federal, de um "parque" para preservação do monumento natural e histórico do Monte Pascoal -- que fica logo a Oeste da aldeia -- e do sítio do "descobrimento do Brasil", entre os municípios de Porto Seguro e Prado. Temerosos de perder suas terras, os Pataxó de Barra Velha também empreenderam, liderados por seu cacique Honório Borges, longa jornada ao Rio de Janeiro, de onde retornaram na companhia de indivíduos que os induziram a uma rebelião que foi brutalmente reprimida, em 1951, por um truculento aparato policial, com incêndios, espancamentos e estupros que provocaram a fuga de muitos pataxós de sua aldeia. Dez anos depois, em 1961, foi, enfim, implantado o Parque Nacional do Monte Pascoal, sob a gestão do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), e os pataxós aí permanecentes, impedidos de plantar em seu próprio território assim transmutado em "unidade de conservação", tiveram também que se dispersar, retirando do próprio desespero uma renovada coragem para voltar a buscar a proteção do indigenismo estatal. Apenas passados mais dez anos, em 1971, a Funai (Fundação Nacional do Índio), que sucedera ao SPI, em 1967, implantou um posto em Barra Velha.

A intenção de promover, pioneiramente, estudos antropológicos que pudessem fundamentar a definição de um território para os Pataxó do Extremo Sul foi o principal móvel para que se firmasse, em 1973, um convênio entre a Funai e o Departamento de Antropologia e Etnologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia), embrião do atual Pineb (Programa de Pesquisas Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro) e vetor de alguns estudos também pioneiros sobre povos indígenas no estado. Naquele início da década de 1970, em uma região tumultuada pelo avanço de novos contingentes demográficos e de uma voraz frente madeireira -- com a construção e inauguração, em 1974, dos trechos locais das rodovias BR-101 e BR-367 --, ao que se seguiu a introdução de um também voraz mercado de turismo, os dispersados Pataxó voltaram a novamente se concentrar, principalmente em pontos do litoral onde haviam vivido seus antepassados e em que ainda era possível encontrar alguns "parentes". Merece destaque, entre estas localidades, a da nova aldeia da Coroa Vermelha, para onde foram atraídos pela própria Prefeitura de Santa Cruz Cabrália, para atender, com o comércio de artesanato, ao público turista em visita ao sítio da "primeira missa no Brasil". Entretanto, a Funai de então, dominada pelos militares do regime ditatorial vigente, acabou por desconsiderar os estudos em curso e negociar com o IBDF a cessão, aos Pataxó, apenas de uma estreita faixa do "parque", demarcada ao final de 1980.

Ao final da década de 1970 já se consolidava, porém, em todo o país, um novo indigenismo capaz de se contrapor ao modelo indigenista estatal republicano -- de inspiração militar e de embasamento jurídico-legal tutelar -- formado por quadros, de extração acadêmica ou religiosa progressista, reunidos em organizações não governamentais. Este novo movimento social daria suporte à formação de um movimento indígena minimamente articulado a nível nacional, e, no plano regional do Nordeste, à retomada do processo designado por estudiosos como "etnogênese" ou "emergência étnica", em que grupos indígenas de há muito envolvidos por processos coloniais e desautorizados enquanto tais pelos ditames da política indigenista estatal e das ideologias de mestiçagem dominantes nas concepções vigentes sobre a formação nacional brasileira, organizam-se na revitalização de suas identidades, de suas culturas próprias e na reivindicação de direitos territoriais longamente esbulhados.

Exemplo marcante desse processo, à época, foi a luta dos Pankararé, concentrados no Brejo do Burgo, à entrada do Raso da Catarina -- ecorregião localizada na parte centro-leste do bioma caatinga --, pela defesa de suas exíguas áreas agricultáveis -- os "brejos" --, crescentemente invadidas, e pelo seu "reconhecimento" étnico oficial, liderados pelo seu cacique Ângelo Xavier -- de incansável disposição para a luta pela garantia dos direitos indígenas do seu povo, após anos de um duro exílio de migrante nordestino despossuído, na cidade de São Paulo -- e sob inspiração dos seus parentes Pankararu, então já "reconhecidos", que vivem do lado pernambucano do São Francisco mas que são, como os Pankararé, egressos da antiga missão do Curral dos Bois, no sítio da primitiva sede do atual município de Glória. A desconsideração das autoridades governamentais da época perante os clamores dos Pankararé só fez aguçar os conflitos entre indígenas e "posseiros" no Brejo do Burgo, o que culminou com o assassinato do cacique Ângelo, no dia seguinte ao Natal de 1979, mesmo mês em que ocorreu, em Salvador, a organização inicial da Anaí (atual Associação Nacional de Ação Indigenista). O assassinato de Ângelo -- jamais punido -- trouxe à consciência da opinião pública, no estado da Bahia, uma primeira evidência trágica da presença de conflitos graves envolvendo povos indígenas, um dado que permanece, desde então, permanentemente atualizado ao longo das décadas seguintes.

Em 1979, os Kiriri de Mirandela iniciaram também uma ousada autodemarcação do seu território, com apoio e estímulo do indigenismo dissidente do CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e do novo indigenismo missionário do Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Contando ainda com o interesse do então chefe do Posto Indígena, Gilvan Cavalcanti, os Kiriri obtiveram da Funai a demarcação oficial do seu território, em 1981, estritamente respeitados os seus limites estabelecidos em um alvará régio de 1700, ainda muito vívidos na memória deste povo. Embora esta demarcação não tenha redundado diretamente na remoção dos muitos ocupantes não indígenas do território kiriri, representou uma primeira e significativa vitória dos povos indígenas na Bahia para o reconhecimento formal dos seus direitos territoriais. Com sua terra demarcada, os Kiriri voltaram a tomar a iniciativa em 1982, ocupando a maior das fazendas ali intrusadas, a Picos, forçando a Funai a negociar a saída definitiva do seu pretenso proprietário. A retomada da Picos pelos Kiriri foi outro marco inicial nas lutas destes povos, tendo sido a primeira ação de uma forma extrema de luta -- as "retomadas" -- a que têm lançado mão, nas décadas seguintes e em momentos diversos, praticamente todos os povos indígenas no estado, quiçá no Brasil.

Em 1982, muitos dos indígenas expulsos da reserva Paraguaçu-Caramuru se organizaram e, sob a liderança do cacique Nelson Saracura, retomaram uma das fazendas invasoras do seu território, a São Lucas, próxima ao antigo posto Paraguaçu. No período em que a reserva esteve mais despovoada de indígenas, entre 1976 e 1982, o governo do estado, nas gestões de Roberto Santos e Antônio Carlos Magalhães, chegou a emitir títulos de propriedade para os fazendeiros invasores, o que só veio a ser judicialmente questionado pela Funai em seguida à retomada indígena, numa ação interposta para nulidade destes títulos, que permaneceria sob julgamento pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por exatos longos trinta anos, até ser, enfim, julgada favoravelmente aos indígenas e à União apenas em 2012. A heroica resistência do kariri-sapuyá Samado Santos, que jamais deixou a reserva, e a tranquila permanência, junto às ruínas do posto Caramuru no rio Colônia, de Bahetá, última remanescente do bando Hãhãhãi contatado na década de 1930, estimularam, em seguida à retomada, o retorno de muitos outros indígenas, agora emblematicamente unificados sob a designação daquele último bando autônomo -- Pataxó Hãhãhãi -- e que, embora confinados e sem água na São Lucas, seguiram enfrentando o cerco de pistoleiros que assassinaram muitos dos seus, como Djalma, sequestrado em 1987, e João Cravim, emboscado em 1988.

Reações violentas à crescente mobilização dos indígenas na Bahia pela recuperação dos seus territórios causaram também o assassinato do kiriri Zezito, em plena praça de Mirandela, em 1983; e do kaimbé Nilo, em 1986, num ataque armado articulado por fazendeiros da família do ex-ministro Oliveira Brito à retomada indígena na "fazenda Ilha", e que envolveu também o incêndio de casas e roças. Também em 1986 os Tuxá foram forçados a deixar seu território agora alagado e a transferir sua aldeia, junto com a própria cidade de Rodelas, para uma nova localização à margem da represa de Itaparica. Nesse processo, extremamente traumático, inclusive pela submersão de sítios sagrados, a comunidade tuxá se dividiu e quase metade dela optou por se transferir para um trecho ainda não represado do São Francisco, indo viver no longínquo município de Ibotirama, onde as condições e o imóvel que lhes foi destinado pela Chesf são claramente insuficientes para a retomada de suas atividades produtivas tradicionais; enquanto que a comunidade que permaneceu em Rodelas não teve até hoje, passados quase quarenta anos, plenamente definido o território para o seu reassentamento produtivo, o que significa que há toda uma geração de tuxás que simplesmente não vivenciou o trabalho na terra!

Entretanto, a grande luta dos indígenas naquele final da década de 1980 pela garantia de direitos e dos seus territórios tradicionais se travou em outro lugar, em Brasília, onde, graças à mobilização do nascente movimento indígena brasileiro, a Assembleia Nacional Constituinte promulgou, em outubro de 1988, uma nova carta constitucional que dispõe que "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens" (artigo 231); e que "os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo" (artigo 232). Com isto, encerraram-se os quase quinhentos anos de leis que determinavam a assimilação forçada de indígenas às sociedades colonial ou nacional (artigo 231) e o instituto da tutela estatal sobre a cidadania indígena (artigo 232), agora livre para organizar suas próprias instituições representativas.

Além disto, o §1º do dito artigo 231 tornou claro -- pela primeira vez desde a introdução dessa figura legal pela Constituição de 1934 -- o que são "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios", dotando, enfim, o Estado de parâmetros legais e técnicos seguros para a definição e proteção destas terras. Com isto, e com a mobilização indígena, seguiu-se, na década de 1990, um período de conquistas para os povos indígenas na Bahia, no qual foi homologada, já em 1990, e pioneiramente para o estado, a demarcação da Terra Indígena dos Kiriri; seguindo-se as regularizações também das Terras dos Kaimbé e Pankararé; assim como das Terras pataxós de Mata Medonha e Coroa Vermelha, garantindo-se, nesta última, que abriga a maior aldeia indígena no estado -- hoje com mais de 6 mil habitantes --, a remoção de mais de trezentas ocupações comerciais de não indígenas, e a não implantação, no local, de um "memorial do encontro" alusivo aos quinhentos anos do "descobrimento" do Brasil, que se pretendia "comemorar" ali, no ano 2000.

Na segunda metade da década ganharam destaque as retomadas indígenas, mais uma vez a começar pelos Kiriri que, em uma sequência impressionante de ações entre 1995 e 1998, conseguiram remover todos os mais de dois mil ocupantes dos oito povoados intrusados em sua Terra. Em 1997, após várias retomadas revertidas por liminares judiciais, os Pataxó Hãhãhãi enfim obtiveram, no STJ (Superior Tribunal de Justiça), a garantia de posse de uma dessas áreas. Em gestões na capital federal para que as autoridades dessem imediato cumprimento a essa decisão, o representante indígena Galdino foi brutalmente assassinado por jovens da classe média local, logo em seguida às comemorações do "Dia do Índio" daquele ano, em um episódio que chocou o país. Com a decisão judicial favorável e com a decadência da lavoura cacaueira no período, a Funai conseguiu, ao final da década, negociar a saída de alguns médios fazendeiros de áreas retomadas pelos Pataxó Hãhãhãi, de modo que, mesmo ainda pendente o julgamento, pelo STF, da ação de anulação dos títulos dos invasores, os indígenas da Reserva Paraguaçu-Caramuru passaram, então, a já controlar cerca de um terço do seu território de 54 mil hectares, rompendo o confinamento em que estiveram desde 1982.

A partir de 1997 os Pataxó do Extremo Sul desencadearam uma série de retomadas, a começar, em outubro, pela principal intrusão na Terra Indígena Coroa Vermelha, o que ensejou a imediata emissão da declaração de posse indígena dessa Terra pelo Ministério da Justiça e sua consequente demarcação e extrusão, concluídas, respectivamente, em 1998 e 1999. No mesmo ano retomaram a última área intrusada na Terra Indígena Águas Belas, que foi também demarcada. Ocuparam, em abril de 1988, a Aldeia Velha -- junto ao Arraial d'Ajuda, próximo à cidade de Porto Seguro --, obtendo, com apoio do Ministério Público Federal (MPF), o imediato início dos estudos de identificação dessa Terra pela Funai, o que lhes permitiu a permanência aí até a garantia de sua posse definitiva por portaria ministerial, já no início de 2011. Em outubro de 1998 ocuparam o território da aldeia Corumbauzinho, estrategicamente localizado entre a já demarcada Águas Belas e o limite sul do Parque do Monte Pascoal, o que fez com que o MPF emitisse "recomendação legal" para que a Funai realizasse os estudos de identificação dessa Terra Indígena e, mais, procedesse à revisão dos limites da Terra Indígena Barra Velha, oriundos do espúrio "acordo de partilha" do Parque, em 1980. A 19 de agosto de 1999, um dia após a criação, pela Funai, do Grupo Técnico para realização desses estudos, os Pataxó ocuparam, enfim, todo o Parque do Monte Pascoal, daí removendo, temporariamente, a administração do órgão federal encarregado (Ibama). A isso se seguiu, até os anos iniciais da década seguinte, outra série de retomadas de áreas do tradicional território pataxó no entorno do Parque, desde Guaxuma, ao norte, até Cumuruxatiba, ao sul -- incluindo aí áreas de outro "Parque", o "do Descobrimento" --, sob o comando da recém criada Frente de Resistência e Luta Pataxó e inspiração do líder Joel Braz. Apenas em 2008 foram concluídos e aprovados os estudos relativos à parte norte desse território, que ora se denomina Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal. Em 2010, o Instituto Chico Mendes (ICMBio, novo órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais) capitulou, enfim, de sua pretensão de gestão exclusiva do Parque Monte Pascoal, ali intrusado. Já em 2015 foram também concluídos e aprovados os estudos relativos à parte sul do território, ora denominado Terra Indígena Comexatiba, e feitos, em seguida, também os acordos com o ICMBio para a gestão compartilhada da parcela do Parque do Descobrimento aí incidente. Quando enfim regularizado, o território pataxó no Monte Pascoal será, em extensão contínua, a maior (cerca de 80 mil hectares) e mais populosa Terra Indígena no estado.

Nas duas décadas finais do século XX e iniciais do XXI estabeleceram-se, na Bahia, constituindo pequenas aldeias e respectivos territórios, grupos familiares oriundos de povos indígenas de Pernambuco e Alagoas; a começar pelos Pankaru da família Quinane, oriundos do Agreste pernambucano, que se fixaram na Terra Indígena Vargem Alegre, em Serra do Ramalho, no sudoeste do estado. Sendo este um município de forte atrativo migratório, principalmente a partir da implantação de agrovilas de um grande projeto de colonização, aí vivem hoje também segmentos dos Fulni-ô e dos Kapinawá, também egressos de Pernambuco, de onde também vieram grupos familiares dos Aticum, ora fixados em assentamentos nos municípios de Angical e Santa Rita de Cássia, também no Oeste, e em Curaçá, Rodelas, Sento Sé e Paratinga, junto ao submédio e médio São Francisco; dos Kambiwá, também em Rodelas, e dos Truká, estabelecidos em Sobradinho e na aldeia Tupã, em Paulo Afonso, também junto ao submédio São Francisco. Neste último município e no de Glória há também comunidades de origem pankararu, como as dos Gueiah e dos Catuí Panká. De Alagoas veio parte da família Sátiro, dos Xucuru-Cariri, fixada junto ao povoado da Quixaba, também à margem do submédio São Francisco, município de Glória, e dos Kariri-Xokó, estabelecidos com pankararus junto às "cachoeiras sagradas" do São Francisco, em Paulo Afonso. Por fim, um grupo também dos Kariri-Xokó estabeleceu a aldeia Thá-Fene no município de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador.

Naquelas décadas finais do século XX prosseguiu o processo de emergência étnica que ao final da década de 1980 trouxe a conhecimento a pequena etnia dos Kantaruré, no município de Glória, e, como outras etnias próximas, em Pernambuco e Alagoas, um "ramo" dos Pankararu. Os Kantaruré tiveram o seu território identificado e regularizado já na década seguinte. Foi também nessa década de 1990 que a Bahia testemunhou a reorganização dos Tumbalalá -- municípios de Abaré e Curaçá --, que formam com os Tuxá, Truká e Tuxi o quarteto de povos da antiga nação Proká habitante do arco, no extremo norte do curso do São Francisco; e dos Tupinambá de Olivença -- antiga aldeia jesuíta de Nossa Senhora da Escada, no município de Ilhéus -- que são, hoje, a segunda maior etnia no estado, com mais de 5 mil indígenas nos municípios de Ilhéus, Buerarema, Una e São José da Vitória.

Os territórios dos Tumbalalá e dos Tupinambá de Olivença, identificados na primeira década do século XXI, estão também entre os maiores no estado, com mais de 40 mil hectares cada. Mais que isso, a Terra Indígena Tupinambá de Olivença se tornou, ao final dessa primeira década, protagonista em ações de retomada, principalmente a partir de sua comunidade na Serra do Padeiro, liderada pelo cacique Babau e também protagonista de um impressionante processo de organização social. Com isso, essa Terra se tornou também, ao lado do território dos Pataxó, no Monte Pascoal, e da Reserva Paraguaçu-Caramuru, dos Pataxó HãHãHãi, um dos três grandes focos de conflitos fundiários que marcariam o cenário da política indigenista na Bahia, nas primeiras décadas do milênio; conflitos nos quais não deixam de estar também presentes manifestações de preconceito da parte de veículos de imprensa e autoridades públicas, e mesmo de criminalização, o que atingiria líderes indígenas destacados, tais como Babau e Joel Braz, entre outros.

Nessa primeira década do século XXI se tornaram também evidentes a organização, desde as repercussões dos "500 anos do descobrimento" no Extremo Sul do estado, de segmentos da tradicional população indígena nessa região, nomeadamente no vale do rio Jequitinhonha -- municípios de Belmonte e Itapebi --, e que afirmam ascendências dos Camacã, Botocudos e, principalmente, Tupi, pelo que se têm apresentado como os Tupinambá do Jequitinhonha; e, no mesmo período, a organização também do povo indígena Paiaiá -- de forte presença histórica em vastas extensões no semiárido do estado --, a partir de uma sua comunidade no município de Utinga, na Chapada Diamantina. Já a presença dos Tuxá, em Ibotirama, e de segmentos dos Kiriri e dos Pankaru, no vizinho município de Muquém de São Francisco, estimulou a insurgência, aí, de outros dois pequenos segmentos familiares extensos de indígenas, um de egressos do estado da Paraíba, que têm assumido a identidade Potiguara, e outro de Tapuia da própria região do médio São Francisco. De Tapuia há também um outro grupo, no município de Seabra, na Chapada Diamantina.

Merece registro, por fim, a presença de uma comunidade dos Xakriabá, no vale do rio Carinhanha, município de Cocos, no extremo sudoeste do estado, egressos do seu aldeamento na antiga missão de São João Batista, no vizinho estado de Minas Gerais, imediatamente ao Sul, e estabelecidos na área atual desde pelo menos a década de 1920. Este grupo se mobiliza e está também em luta por seus direitos territoriais desde pelo menos essa década inicial do presente século. Já na década de 2010 testemunhamos o processo de organização dos Tuxi -- a quarta etnia da tradicional nação Proká -- no município de Abaré, submédio São Francisco; e também dos Katrimbó, no município de Monte Santo, mesmo contexto histórico regional dos Kiriri e dos Kaimbé, na bacia do médio Itapicuru. Enquanto isso, no Sudoeste e Médio Sudoeste do estado, no vale do Rio Pardo, grupos dos Kamakã -- ou Mongoyó -- originários dos antigos aldeamentos missionários ali existentes, se reorganizam e retomam, juntamente com grupos de Imboré -- um segmento dos Botocudos -- e de Tupinambá, uma parcela do território do antigo aldeamento do Cachimbo, no atual município de Ribeirão do Largo; e outros grupos de Kamakã-Mongoyó também se organizam a partir dos próprios núcleos urbanos de Itapetinga -- antiga aldeia do Catulé --, Caatiba e Vitória da Conquista. Mongoyó são também os indígenas autoidentificados como Paneleiros, também no município de Vitória da Conquista. Ainda em contexto urbano organizam-se os Kariri da tradicional comunidade da Panelada, na pequena cidade de Rio de Contas, ao Sul da Chapada Diamantina, e os Kariri-Sapuyá da antiga aldeia de Santa Rosa, em Jequié. No litoral, o movimento dos Tupinambá estende-se, abrangendo a importante comunidade da antiga aldeia do Espírito Santo, atual vila de Abrantes, na região metropolitana da capital, e, mais ao norte, as comunidades de Tupinambá em Maçarandupió, município de Entre Rios, onde também houve um antigo aldeamento, e no município do Conde. Por fim, ainda no litoral, mas já no Baixo-Sul do estado, se organiza, com base inclusive em um forte movimento por educação própria e diferenciada, o povo Guerém, habitante de todo o distrito homônimo, onde está o já mencionado antigo aldeamento missionário de São Fidélis, no município de Valença.

A propósito, o movimento por educação específica, diferenciada e de qualidade tem também ganhado notoriedade entre as lutas indígenas no estado, neste início de milênio. Em 1997, com apoio da Anaí, inicia-se o primeiro curso de magistério indígena, ao que se segue, com protagonismo indígena, a formação do Fórum de Educação Indígena na Bahia (Forumeiba). Já no final da década seguinte, em 2009, tem início, na Uneb (Universidade do Estado da Bahia), a primeira licenciatura superior indígena no estado -- a Liceei (Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena) --, secundada, já no ano seguinte, pela implantação da licenciatura intercultural (Linter) indígena do IFBA (Instituto Federal da Bahia), em Porto Seguro. Em 2024 também a UFBA dá início à sua Licenciatura Intercultural Indígena, em um contexto já impregnado pela forte presença indígena em diversos outros cursos dessa universidade, bem como em outras universidades públicas no estado. Vale observar que a Bahia é pioneira na criação da carreira de magistério superior indígena, por uma lei de 2011, embora só em 2024 essa carreira tenha sido equiparada à do magistério regular, também por lei. Entretanto, são ainda bastante insuficientes as vagas destinadas, por concurso público, para ingresso na carreira, o que segue sendo pauta de luta dos professores e do movimento indígena no estado.

O início da segunda década do milênio foi, assim, marcado por conquistas e avanços do movimento indígena na Bahia, com destaque para o já referido julgamento favorável da ação de nulidade de títulos dos ocupantes não indígenas da Terra Indígena Paraguaçu-Caramuru, em 2012, e a formalização, em 9 de dezembro de 2011, do Mupoíba (Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia), que vem, desde então, promovendo e coordenando as ações do movimento no estado, sempre em articulação com as organizações indígenas nos níveis regional -- a Apoinme (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo),  e nacional -- a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Mas a segunda década do século XXI significou também o início de um forte movimento de reação à efetivação dos direitos indígenas por parte de grupos econômicos ligados ao agronegócio e à mineração, politicamente muito poderosos, inclusive no Congresso Nacional, com iniciativas judiciais e principalmente legislativas que buscam alterar ou mesmo suprimir as salvaguardas legais e mesmo constitucionais daqueles direitos, em especial no que diz respeito à regularização e proteção de Terras Indígenas. No contexto atual, embora tais iniciativas não tenham conseguido ainda consolidar retrocessos legais efetivos, têm servido para paralisar, quase completamente, há mais de dez anos, os processos de demarcação e as ações de proteção dessas Terras. Com isso, na Bahia, importantes territórios, já há vários anos com seus processos finalizados para demarcação, tais como, destacadamente, as Terras Indígenas Tupinambá de Olivença e Barra Velha do Monte Pascoal, se tornaram focos alarmantes de conflitos e de agressões aos indígenas. No caso dessa última Terra e da contígua Terra Indígena Comexatibá, os anos iniciais da década de 2020 têm sido impulsionados por um vigoroso, e bem sucedido, processo de retomadas, pelos Pataxó, desses territórios, ocupados principalmente por pastagens e plantios de eucalipto; não porém sem violentas reações organizadas de parte dos fazendeiros ocupantes dessas áreas. Entre 2022 e 2023, três jovens pataxós foram assassinados por policiais militares em ações clandestinas de pistolagem a serviço desses fazendeiros, ademais de muitos outros assassinatos não esclarecidos de indígenas na região, sem que os executivos federal e estadual adotem medidas efetivas para a proteção de suas vidas.

No momento em que fazemos a presente atualização deste texto, em meados de 2024, o movimento dos povos indígenas na Bahia segue crescente e vigoroso. Há, como se viu, muitas conquistas a destacar, mas ainda muitas por que lutar arduamente. São hoje mais de trinta povos indígenas na Bahia, vivendo em cerca de 90 territórios, em mais de cinquenta municípios e mais de duzentas comunidades locais. Pelos dados do censo de 2022, a população indígena no estado é de aproximadamente 230 mil pessoas, o que inclui importantes segmentos indígenas fora dos seus territórios e de autodeclarados indígenas em contextos urbanos, fazendo da Bahia o estado com a segunda maior população indígena no país. A Anaí mantém um monitoramento permanente das Terras Indígenas na Bahia e de sua atual situação jurídica, o que pode ser consultado em: <https://anaind.org.br/>.







*Antropólogo, professor na Uneb, associado fundador e atulalmente diretor da Anaí.